quinta-feira, fevereiro 09, 2006

O Tijolo da Grande Construção

Paulo Freire
O andarilho da Utopia

Diálogo e parceria

Paulo Freire, o Andarilho da Utopia, o primeiro projeto em regime de co-produção que a Rádio Nederland, a emissora internacional da Holanda, realiza com uma instituição brasileira não foi escolhido ao acaso. A crença do educador brasileiro na força do diálogo como ferramenta principal do Homem através da educação traduz o desejo da Rádio Nederland de se aproximar ainda mais de seus parceiros no Brasil através de projetos especiais, paralelos às nossas produções diárias de programas de atualidade. Projetos que visam a realização de programas radiofônicos sobre assuntos variados da vida brasileira, regionais e nacionais, abrodados a partir de uma perspectiva internacional e que possam contribuir para a promoção do Homem.Trata-se de mais um passo na nova via empreendida pela emissora internacional da Holanda desde que deixamos as transmissões pelas ondas curtas e iniciamos nossas transmissões via satélite.

Em parceria com a CRIAR Assessoria de Comunicação de São Paulo, com o apoio da Universidade de São Paulo e do Instituto Paulo Freire, entre outras instituições, a Rádio Nederland tem o prazer de oferecer às emissoras parceiras no Brasil, à bibliotecas, instituições educacionais e ao público em geral este Paulo Freire, o Andarilho da Utopia.

Porque acreditamos no diálogo e na parceria como ferramentas fundamentais nestes tempos de globalização.

Carlos Lagoeiro

Paulo Freire

Pesquisa e texto (trechos) de Moacir Gadotti (Instituto Paulo Freire) e Maria Duque-Estrada (jornalista), publicado na Edição Comemorativa dos 50 anos da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência)

"Eu gostaria de ser lembrado como alguém que amou o mundo, as pessoas, os bichos, as árvores, a água, a vida", disse Paulo Freire em sua última entrevista, em 16 de abril de 1997, duas semanas antes de morrer de infarto no dia 2 de maio, aos 75 anos.

Paulo Reglus Neves Freire encontrou muitas situações adversas desde a infância, quando a crise financeira de 1929 forçou sua família a mudar-se de um bairro de classe média, em Recife, onde nasceu em 19 de setembro de 1921, para Jaboatão, área mais pobre, onde completou o primário. "Fiz a escola primária no período mais duro da fome, de uma fome suficiente para atrapalhar o aprendizado.", contou uma vez. Aos treze anos perdeu o pai, o seu grande incentivador, e aos dezessete começou a trabalhar para ajudar em casa. Graças a uma bolsa de estudos, pôde cursar um colégio particular, o Ginásio Oswaldo Cruz. Já tinha quinze anos quando fez o exame de admissão - equivalente, hoje, à passagem do curso primário para o primeiro grau.

Foi entre os quinze e os vinte e três anos que Freire disse ter sido "atraído pela educação". O casamento, em 1944, com a professora primária Elza Maria Costa Oliveira, aumentou seu interesse pelas questões ligadas ao ensino. Já formado em direito pela Universidade Federal de Pernambuco, onde ingressara aos vinte e dois anos, exerceu o cargo de diretor do setor de Educação e Cultura do Serviço Social da Indústria (SESI) entre 1947 e 1954, passando a diretor de 1954 a 1957. Através do SESI teve a primeira experiência com alfabetização de adultos.

Em 1956, a convite do prefeito progressista Pelópides Silveira, Paulo Freire passou a integrar o Conselho Consultivo de Educação de Recife. Dois anos depois, num congresso sobre educação de adultos, no Rio de Janeiro, sistematizou pela primeira vez seu método de alfabetização que, por integrar consciência política e aprendizado da escrita, valeu-lhe na época o repúdio dos "conservadores".

Lecionava filosofia da educação, disciplina pela qual se doutourou com a tese Educação e atualidade brasileira, quando, em 1961, foi nomeado diretor da Divisão de Cultura da Secretaria Municipal de Educação pelo então prefeito de Recife, Miguel Arraes. Por iniciativa de Arraes, o seu método de alfabetização foi aplicado como experiência em trinta trabalhadores braçais do Departamento de Obras. Os resultados foram tão surpreendentes que o prefeito decidiu ampliar a experiência através do Movimento de Cultura Popular, criado para levar educação e saúde à população dos mocambos da cidade.

Veio a seguir sua colaboração na campanha "De pé no chão também se aprende a ler", empreendida com sucesso pelo então prefeito de Natal, Dialma Maranhão.

Ao organizar e dirigir a campanha de alfabetização de Angicos, Freire ficou mais conhecido nacionalmente como educador voltado para as questões do povo. Logo depois foi para Brasília a convite do ministro da Educação Paulo de Tarso Santos, do João Goulart, para realizar o Programa Nacional de Alfabetização que pretendia alfabetizar e politizar cinco milhões de adultos, eleitores em potencial - na época, o voto do analfabeto não era permitido. Mas o tempo foi curto: menos de um ano, por causa do golpe de Estado.

Em setembro de 1964, setenta dias de prisão em Olinda e Recife e a pressão de inquéritos policiais-militares, fizeram com que Paulo Freire se decidisse a deixar o país, sob a proteção do embaixador da Bolívia. Pouco tempo depois, um golpe de Estado nesse país o levou para o Chile onde, com a família, iniciou nova etapa de sua vida e de sua obra. De abril de 1969 a fevereiro de 1970 morou em Cambridge, Massachussets, dando aulas sobre suas próprias reflexões na Universidade de Harvard, como professor convidado. Em seguida, mudou-se para Genebra, para ser consultor especial do Departamento de Educação do COnselho Mundial de Igrejas.

Entre os "ensinamentos educativos", a prisão não foi dos menores, mas ela o preparou para o exílçio de quinze anos, quando viu ir por terra um sonho que começava a se realizar com sucesso: o de alfabetizar e dar voz aos iletrados, aos oprimidos brasileiros.

O método e sua prática

O método Paulo Freire parte da pesquisa do universo popular e temático do grupo a ser alfabetizado para selecionar situações que servirão de instrumento não só do aprendizado da escrita e da leitura, mas também da discussão da realidade, relacionando o preocesso educativo ao meio social do aluno. Através dessa pesquisa, o educador identifica as "palavras geradoras". O exemplo mais conhecido é o que utiliza a palavra geradora "tijolo": o professor apresenta ao grupo a imagem de uma construção na qual se destacam o objeto tijolo e a palavra "tijolo". As sílabas desta palavra serão usadas progressivamente para a construção de outras palavras, como laje, lote, luta.

mas a grande inovação de Paulo Freire foi basear seu método no diálogo, em que professor e aluno aprenderiam juntos, ao mesmo tempo, acabando com a escola autoritária e dando vida a uma nova escola, democrática e preparadora do homem para o mundo. "Um dos grandes pecados da escola é desconsiderar tudo com que a criança chega a ela. A escola decreta que antes dela não há nada", dizia. E, outra concepção fundamental: Paulo Freire viu o analfabetismo como resultado de uma situação não só econômica e social como também política e histórica de opressão.

Os fundamentos básicos de sua teoria se encontram em Educação como prática de liberdade, escrito nos intervalos das prisões e concluído no exílio, no Chile, que tem um instigante prefácio do sociólogo Francisco Weffort.

Também foi no Chile que publicou, em 1968, Pedagogia do oprimido, sua obra mais conhecida, que dedicou "aos esfarrapados do mundo e aos que neles se descobrem e, assim descobrindo-se, com eles sofrem, mas sobretudo com eles lutam". Editado primeiro em inglês e espanhol em 1970, só apareceu no Brasil quatro anos depois.

Como outros pensadores, Paulo Freire assinalava: "A linguagem tem a ver com as classes sociais, sendo que a identidade e o poder de cada classe se refletem na sua linguagem". Ele considerava que os critérios linguísticos da elite são muito difíceis de serem alcançados pelas pessoas comuns de baixa extração econômica. "Ao entender os aspectos elitistas e políticos do uso padronizado da língua, o professor libertador evita culpar os estudantes pelos seus erros de utilização da língua", escreveu. Isto não quer dizer que o professor libertador deva desprezar o uso correto da língua segundo a norma culta: "Do meu ponto de vista" - acrescentou - "o educador deverá tornar possível o domínio, pelos estudantes, do padrão, para que possam sobreviver, mas sempre discutindo com eles todos os ingredientes ideológicos desta ingrata tarefa".

Críticas à sociedade tradicional

Ao substituir a autoridade pelo diálogo na sala de aula, a nova pedagogia não abole a disciplina. A esse respeito, Freire apontou várias armadilhas que, na escola tradicional, levam ao empobrecimento do papel do professor. Por exemplo, ele via com suspeita a substituição do tratamento de "professora" pot "tia" nas escolas. "A candura e o carinho da tia - advertiu - encobre subrepticiamente uma deslegitimização e uma desprofissionalização do docente e de seu papel e, enfim, um conjunto de sentidos não tão cândidos a respeito dos quais os professores e professoras deviam no mínimo estar conscientes e alertas. A professora pode gostar de ser tia e preferir continuar sendo chamada de tia. Nada tenho contra isso. Mas é preciso que ela saiba o que há de manha ideológica nesse tratamento".

Outras situações, ao contrário, levam à aceitação do autoritarismo por parte dos alunos. Um exemplo é quando o professor responde em voz alta a suas próprias perguntas e encerra o assunto ao enfrentar o silêncio da turma ou respostas monossilábicas. Freire descreveu este momento como "o mais angelical da pedagogia tradicional, porque os alunos aprendem como a resposta ideal já está resolvida na cabeça do professor ou no manual. Como é que suas próprias respostas poderiam ser melhores? Se ficarem quietos o tempo suficiente forçarão o professor a dizê-las em voz alta e poderão copiá-las com o menos trabalho possível".

O legado de Paulo Freire

Um mês antes de morrer, Paulo Freire esteve em Nova York para um encontro de professores. Na época, acabara de lançar seu último livro, Pedagogia da autonomia (Ed. Paz e Terra), e escrevia um novo , que se chamaria Cartas Pedagógicas. "É sobre determinados envolvimentos nossos na vida em casa, na relação doméstica, na escola, na rua, procurando esclarecer como essas situações têm muito a ver com o destino democrático do Brasil", revelou. "Escrevo fazendo um apelo para que se possa fazer qualquer coisa no sentido de melhorar a educação brasileira. Para isso, é urgente que se respeitem professores e porfessoras. E uma das condições de respeito é pagar bem, ou menos imoralmente. A outra condição é acreditar".

Paulo Freire deixou diversos livros que continuam sendo publicados em diversas línguas e influenciaram toda uma geração de educadores e militantes políticos. Ainda vivo, virou nome de nove escolas, tornou-se cidadão honorário de nove cidades, recebeu seis prêmios internacionais e batizou três cátedras universitárias. Foi doutor honoris causa por 28 universidades, nome de rua em Itabuna (BA) e de 26 centros de estudos e documentação em questões educacionais em países tão heterogêneos quanto a Itália, o Chile, a Bélgica e os Estados Unidos. Sem falsas modéstias, não escondia seu prazer com as homenagens: "Elas me alegram e me fazem bem", confessa em Pedagogia da Esperança (1992).Mas apesar de todas as homenagens que recebeu, foi sobretudo um homem simples. É por isso que Moacir Gadotti insiste:

- Dar continuidade a Freire não significa tratá-lo como um tótem, ao qual não se pode tocar mas se deve apenas adorar; nem como um guro, que deve ser seguido por discípulos, sem questionamentos. Nada menos freireano do que esta idéia. Paulo Freire foi, sobretudo, um criador de espíritos. Por isso deve ser tratado como um grande educador popular. Adorar Freire como um tótem significa destruí-lo como educador. Por isso não devemos repetir Freire, mas "reinventá-lo", como ele mesmo dizia, e levar adiante o esforço de uma educação com uma nova qualidade para todos.

E qual foi o legado que Paulo Freire deixou?

- Suas palavras e suas ações foram palavras e ações de luta por um mundo "menos feio, menos malvado e menos desumano". Ao lado do amor e da esperança, ele também nos deixou um legado de indignação diante da injustiça. Diante dela, dizia que não podemos "adocicar" nossas palavras - afirma Gadotti, organizador da bibliografia de Paulo Freire (Ed. Cortez, 1996) com 780 páginas, a obra mais completa sobre o educador, que está sendo traduzida em diversas línguas.

O que mais preocupava o educador nos últimos anos era o avanço de uma globalização capitalista neoliberal. Ele atacava tanto o neoliberalismo por ser uma doutrina visceralmente contrária ao núcleo central de seu pensamento, que é a utopia.

- Para Paulo Freire - continua Gadotti - o futuro é a possibilidade. Para o neoliberalismo o futuro é uma fatalidade. O neoliberalismo apresenta-se como única resposta à realidade atual, desqualificando qualquer outra proposta. Desqualifica principalmente o Estado, os sindicatos, os partidos políticos. Denuncia a política fazendo política.

Outro legado de Paulo Freire, acrescenta, é a esperança.

Ele era um ser humano esperançoso. Não por teimosia, mas por "imperativo histórico e existencial", como afirma em Pedagogia da Esperança. Além da esperança, cultivou a autonomia, que é a capacidade de decidir-se, de tomar o próprio destino nas suas mãos. Diante de uma economia de mercado que invade todas as esferas de nossa vida, precisamos lutar - também através da educação - para criar na sociedade civil a capacidade de governar e controlar o desenvolvimento (alternativa ao socialismo totalitário).

No desenvolvimento de sua teoria da educação, Paulo Freire conseguiu, de um lado, desmistificar os sonhos do pedagogismo dos anos 60, que sustentava a tese de que a escola tudo podia, e, de outro lado, conseguiu superar o pessimismo dos anos 70, para o qual a escola era meramente reprodutora do status quo. Fazendo isso, superando o pedagogismo ingênuo e o pessimismo negativista - conseguiu manter-se fiel à utopia, sonhando sonhos possíveis.

Fazer hoje o possível. De hoje para amanhã fazer o impossível de hoje.

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Este texto está contido no encarte do CD "O Andarilho da Utopia" - Paulo Freire (ver link no início do texto)

Ressalto aqui, a realização de um belo trabalho, o qual registra a vida e obra de um "grande pensador e ator" da educação no Brasil.
É interessante destacar também, que esse projeto foi idealizado e concretizado por uma instituição estrangeira, a Rádio Nederland, da Holanda. Um claro sinal de que só começamos a existir a partir do momento em que nos enxergam. Triste realidade...

Um comentário:

Anônimo disse...

Oi,Viviane,

Que legal,achei interessante sua abordagem!
E compartilho de sua adoração pelo cara q foi um verdadeiro filósofo da educação brasileira.
Vamos fomentar as coisas boas q temos, mesmo que tenhamos de ser pessimistas!

Diego.